quarta-feira, novembro 17, 2010

Luxo no tempo e espaço

Texto primeiramente publicado na revista Mag!, tema 'Luxo', no início de 2010 e ilustrado com ensaio fotográfico de Ana Cabaleiro Rodríguez

“O luxo não é o oposto da pobreza, e sim da vulgaridade”. Ao usar a frase de Coco Channel quase no final de seu ensaio sobre o luxo, o autor alemão Hans Magnus Enzensberger ilustrava não apenas sua linha de pensamento, mas também a causa mortis do luxo enquanto bem material raro e exclusivo. Vulgaridade aqui não é o fato de muitos hoje terem acesso ao que antes era raro, ou que suas imitações sejam vulgares. “O luxo sempre enfrentou uma questão problemática do ponto de vista estético”, explica Hans Magnus. “Todo tipo de ostentação do luxo tende ao excesso: ouro demais, brilho demais, objetos decorativos demais, impertinência demais”.

O autor chama de necrotérios do luxo os duty frees e shopping centers. “Ali se expõem os miseráveis restos do querido defundo. O que há de sinistro neles é que se multiplicam como num filme de terror. O aspecto de distinção cai definitivamente no ridículo quando a desoladora mesmice aparece nas monótonas listas de in e out”. O luxo privado, como ainda o conhecemos, teria perdido seu espectador. “Onde não há mais nada a ser visto, o voyeur afasta-se com desdém”. Que forma, então, assumirá o luxo nesta “fuga de sua própria sombra?”

Enzensberger profetizava já em 1995: “sob o signo do consumo que cresce com rapidez, escassos, raros, caros e desejáveis não são automóveis velozes e relógios de ouro, caixas de campanhe e perfumes – coisas que podem ser adquiridas em qualquer esquina – e sim os pré-requisitos elementares da vida, como o tempo, a atenção, o espaço, o sossego, o meio ambiente, a segurança. Estranha inversão da lógica do desejo: o luxo do futuro diz adeus ao excesso e aspira ao necessário, e dele só há a temer que esteja à disposição de poucos. O que de fato importa nenhum duty-free tem a oferecer”.

Ao texto de Hans Magnus somou-se, um pouco depois, os estudos do sociólogo italiano Domenico De Masi, entre eles “O Ócio Criativo”. O livro, em formato de entrevista, fala do tempo livre como um potente instrumento – no desenvolvimento criativo humano da era pós-industrial; e revolucionário na superação dos formatos tradicionais do trabalho, que o separam do lazer e do estudo.

“Desde sempre o ser humano espera trabalhar o menos possível, enriquecer o máximo possível, cansar-se o menos possível, sofrer o menos possível”, lembra o sociólogo italiano. De Masi conclui que essa tendência histórica, aliada às novas tecnlogias, que substituem cada vez mais diversas atividades, como a do burocrata, nos levará para um futuro onde “será difícil distinguir estudo, trabalho e tempo livre”.

O tema tempo inspira, em si, uma viagem filosófica. Entre as centenas de estudos e ensaios dedicados à ele ao longo da história humana, está a palestra de Jorge Luis Borges na Universidade de Belgrado nos anos 70. Borges cita, como muitos outros autores, Santo Agostinho: “O que é o tempo? Se não me perguntam, sei. Se me perguntam, ignoro”. Cita, ainda, o que acredita ser uma frase de Henri Bergson: “se tivéssemos resolvido o problema do tempo, teríamos resolvido tudo”. Borges a usa para elaborar, com humor: “felizmente, creio não haver o menor perigo de que seja resolvido; ou seja, prosseguiremos sempre ansiosos”.

O tempo livre que tanto apaixona De Masi é o mais próximo que podemos chegar do tempo em seu estado puro. Disse o sociólogo em sua entrevista para o Roda Viva de 1998, que bateu recordes de audiência na TV Cultura: “O problema é que o tempo só é livre se estivermos prontos para usá-lo segundo nossa autonomia. Se for assim, é um luxo. Não cabe aos outros organizá-lo. As estruturas organizadas para o tempo livre na praia, por exemplo, são verdadeiros campos de concentração. Tudo já é pré-planejado. O tempo livre deve ser, sobretudo, o momento do luxo. Portanto, devemos nos preparar.”

Estamos preparados para auto-gerenciar nosso tempo livre criativamente? De Masi aponta a educação como ferramenta fundamental, não a educação de tapa buraco típica das escolas públicas brasileiras, mas a educação de alta qualidade, que incentiva a pesquisa científica e o fazer puramente artístico. Das universidades com capacidade de promover o conhecimento e a diversidade que este pode gerar.

As idéias de Enzensberger e De Masi vêm, de certa forma, se materializando desde o final do século passado. A chamada economia criativa, vista como um dos motores propulsores de uma nova ordem social, ecológica e de mercado, está em toda a parte e é a que mais cresce no mundo desde a virada do século. Entre 2000 e 2005, o comércio internacional de bens e serviços criativos aumentou a uma taxa sem precedentes de 8.7% ao ano, atingindo um volume total de vendas de 424.4 bilhões de dólares em 2005(*). Recentemente, o tema foi capa da Revista da Folha.

Em Londres, por exemplo, a economia criativa responde por 1 a cada 5 empregos. Em entrevista à BBC Radio 4, Alice Rowsthorn, crítica de design do jornal International Herald Tribune, traçou com segurança as linhas para o futuro às portas da abertura do London Design Festival de 2009: “hoje, o manifesto ideológico para o design está mudando. No século 20, quando o movimento moderno ditava a ideologia, design era basicamente produzir coisas palpáveis, fossem elas bidimensionais ou tridimensionais. O design hoje está mudando junto com a economia e a indústria. É cada vez mais sobre imaterialidade, software design, o design de interface decidindo como controlamos as coisas. Mas também atuando na esfera dos princípios do pensar em design, da capacidade de resolver um problema”. Ou, ainda, como complementa um dos editoriais dos organizadores do festival, “projetos cujo foco sejam justamente idéias”.

A corrente existe, é fértil, vem repleta de esperança e, pela primeira vez na história, com ações concretas na direção da inclusão, do “luxo para todos”. Os diversos projetos desenvolvidos em milhares de comunidades em todo o mundo dão provas desta boa vontade dos Homens sobre a Terra. Como a gigante sueca Ikea, produtora em massa de móveis e utilitários baratos, que recentemente lançou painéis de parede unindo a designer holandesa Hella Jongerius à comunidade de mulheres indianas trabalhando em oficinas patrocinadas pela UNICEF. A idéia parece não ser apenas a de explorar uma exigência crescente dos consumidores, que cada vez mais buscam a marca do comércio justo nos produtos que compram, mas a de que o design e as técnicas disponibilizadas pela mega empresa ensinem essas mulhers o necessário para começarem seu próprio negócio.

Da ponte entre a Suécia e a Índia, podemos olhar, também, para projetos como o do artista popular brasileiro Nilson Pimenta, que mantém um atelier de arte ambulante e outro fixo na Universidade Federal do Mato Grosso para pessoas de baixa renda. Conta Nilson sobre um de seus alunos: “Tem um cara que ficou comigo por 25 anos. Hoje a vida dele é a arte. Em uma hora de relógio, pinta um quadro e ganha 20 reais, mais roupa e comida. Muitas vezes pinta enquanto o comprador espera. Vende para qualquer um. E durante o mês monta seu salário. E tem outro que é artista, mas ainda mexe com drogas, mas se não fosse a arte já poderia estar morto”.

As possibilidades são infinitas e vêm se multiplicando em todo o mundo. Mas como muitos apontam – e lutam por –, este processo só vingará se conseguirmos superar o assustador desastre ecológico e social que bate às portas todos os dias. De um lado, a ameaça de uma massa de desempregados sem educação e espaço para poder transformar seu tempo livre em algo que o beneficie e o torne sustentável. De outro, talvez nossa impotência para nos livrarmos dos obstáculos herdados da era industrial – e de nossa própria história. Há muitos, mas vale lembar pelo menos dois centrais apontados por De Masi:

- o dos burocratas. “A criatividade é a fantasia aliada à realização. Realização sem fantasia gera burocratas. E burocratas são sádicos. Um burocrata é feliz quando pode matar as idéias dos criativos; quando pode dizer: ‘o prazo venceu’. Na sociedade pós-industrial, haverá cada vez menos lugar para os burocratas, pois são o oposto da estética e da criatividade. A criatividade e a estética são as dimensões que, mais do que qualquer outra coisa, determinam nossa felicidade. E os burocratas determinam nossa infeliciedade”.

- o da globalização psicológica. Não existe nada que a expresse melhor do que a foto de dois índios brasileiros sentados numa lanchonete comendo hambúrgueres do McDonald’s com copos descartáveis de Coca-Cola à frente. Como bem ilustra De Masi: “vivemos em uma globalização psicológica que, de um lado, transforma o mundo numa grande vizinhança, mescla as experiências, mas, de outro, aniquila as diferenças. E aniquilar as diferenças é terrível”.

E se não conseguirmos derrubar pelo menos esses obstáculos, é bem provável que entraremos novamente em zigue-zague, como sugere o título do livro de Enzensberger, que conclui em seu capítulo sobre o luxo: ‘É difícil dizer como os bens escassos do futuro – o tempo, a atenção, o espaço, o sossego, o meio ambiente, a segurança - serão distribuídos, mas uma coisa é certa: quem só tiver um deles, não terá nada. Pelo menos nesse aspecto, o luxo também continuará a ser no futuro o que sempre foi: um obstinado adversário da igualdade”.

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(*) dados da Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento das Nações Unidas. (United Nations Conference on Trade & Development).

Referências sugeridas:

-Zigue-Zague, coletânea de ensaios, includindo “Luxo: Passado, Presente e Futuro – Reminiscências do Excesso”, de Hans Magnus Enzensberger
-O Ócio Criativo e outros títulos, de Domenico De Masi
-Roda Viva, TV Cultura, entrevista com Domenico De Masi
-O Brasileiro entre os Outros Hispanos, de Gilberto Freyre
-Borges Oral, incluindo “O Tempo”, de Jorge Luis Borges
-Ivy-marãen: a terra sem males, ano 2997, de Darcy Ribeiro
-After the Crunch, compilação de textos de renomados escritores, jornalistas, designers, entre outros, sobre a economia criativa, gratuito na web. Publicado pela Cultural & Creative Skills em abril de 2009.
- Quanto Vale Ou É Por Quilo, filme de 2004 de Sérgio Bianchi