domingo, setembro 19, 2010

O rock e eu

Eu deveria ter embarcado para Porto Alegre em 7 de setembro último para uma série de matérias, todas sobre música. Mas quebrei o pé no dia 2 e fui proibida de fazer qualquer coisa que não fosse relaxar e esperar 30 dias. Perdi também minha passagem de volta à Londres. E não faltaram pessoas a dizer: ‘ah, é um sinal para você ficar quietinha’... Pode até ser, sem esquecer o lado ingrato que foi perder alguns trabalhos, coisa que não posso me dar ao luxo... Mas ajudou a ter tempo de escrever o artigo sobre o pastor James Taylor, por exemplo, e este aqui.

Entre os entrevistados em POA estaria Humberto Gessinger para uma pauta que acabei desistindo de fazer, algo na linha de: como a indústria selvagem, atitudes anti-culturais e uma série de tragédias enterraram o sonho de um movimento rock nos anos 80. Na troca de emails com Humberto sobre o tema e minhas dúvidas, ele gentilmente disse que estaria me mandando seus últimos trabalhos – o livro Pra Ser Sincero – 123 variações sobre um mesmo tema, e um DVD de seu projeto de algum tempo já com Duca Leindecker, Pouca Vogal.

Li a primeira parte do livro bem rapidamente, a segunda vai levar muito mais tempo. Esta primeira parte me inspirou a escrever este artigo, talvez tentando colocar as coisas em perspectiva para queridos amigos e colegas de profissão, que vêm me pedindo para escrever um livro sobre os anos 80, ou dizendo que eu deveria voltar a escrever sobre música.

Mas antes, quero falar um pouco sobre o livro do Humberto. Nunca gostei de biografias, o primeiro entre tantos outros pecados capitais, segundo os especialistas, para uma jornalista de música, coisa que nunca fui. Não gosto de biografias escritas por terceiros e, salvo erros que sempre cometo, não há tantas autobiografias por aí. Acredito que tenham valor apenas quando a vida da pessoa tem um fato muito relevante socialmente, como a vida de violência vivida por Tina Turner com seu marido, ou o envolvimento com drogas de Ray Charles , ou a forma como Oscar Wilde foi vilipendiado por ser homossexual... No sentido de ajudar outras vítimas...

O que não gosto em biografias é a masturbação dos autores não protagonistas sobre a obra do artista, seja ele filófoso, poeta, escritor, poeta rock-pop. E o crime que cometem ao tentar dissecar a obra, buscar ali uma verdade, no estilo o-que-quis-dizer. Para mim, isso mata qualquer obra: limita a interpretação e o imaginário pessoal, que é a razão maior de uma obra artística existir. Aponta para uma verdade que nada mais é que a verdade do autor (da biografia), que fala da obra como um cardiologista. Operações deste tipo não me interessam. Não me interessa saber o que está atrás da canção, da poesia, da obra, mas de que forma elas me influenciaram e me tocaram particularmente. E como tocaram e influenciaram outras pessoas.

Salvo engano, acredito ter sido Nietzsche quem disse: “o filósofo mente, o poeta diz a verdade”. O filósofo faz passar o filtro da razão, o poeta fala de coração. O maior tesouro da poesia – seja qual for sua categoria, a poesia literária, mais filosófica, ou a poesia pop-rock, mais simples de coração – é justamente sua capacidade de universalizar e logo em seguida particularizar, quando é apropriada pelo leitor-ouvinte, que a transforma novamente em algo pessoal, só seu e de mais ninguém... seu tesouro particular... o biográfo alienígena, com suas verdades por trás da canção ou poesia ou obra, se interpõe nesse livre reverberar natural da arte. É, no mínimo, pretencioso, senão cruel. Podem dizer que dá mais elementos para entender a obra, mas eu considero que a fecha em caixinhas particulares.

A primeira parte do livro de Humberto é autobiográfico e tri-simples de coração. Não poderia ser diferente, vindo dele. Aproveita as primeiras 26 páginas para contar sua história, usando sua marca registrada que são suas frases e visão de mundo muito particulares. Tocante mesmo aqui é como fala da mulher Adriane e da filha Clara. Por ele, diz, acabaria esta parte do livro ali mesmo, na página 26. Mas resolveu continuar. “Daqui pra frente, vou me valer desta abstração que é a contagem do tempo em anos, pois me falta ciência para situar bem o que fiz em relação às tribos e ondas do momento. Efeito colateral dos coloridos livros de geografia da minha mãe, tenho gráficos e tabelas com todos os shows, gravações, videoclips e programas que fiz. Por si só, dizem muito pouco, quase nada. Serão úteis para criar um quadro pontilhista. Impressões numa imagem sem linhas. Curioso caso em que quadro será moldura. Continuo achando que, falem bem ou falem mal, os discos falam por si. É só ouvir.”

Talvez só para mim e mais alguns gatos pingados jornalistas, Humberto é um dos poucos daquela época que conseguiu manter um discurso coerente. Entre os fãs, pelo menos 123 mil outros corações sentem o mesmo. Dá para sobreviver e ser feliz assim.

A segunda parte do livro traz 123 letras de canções. Provável que o livro não tenha recebido espaço merecido na sopa de letrinhas que é a grande imprensa do eixo Rio-SP, e que continue restrito ao infinito momento 1, 2, 3 marcado pelas baquetas no início da canção. Mas sair na grande imprensa, no entanto, deixou de ter importância... E talvez nunca realmente tivesse alguma.

Pra ser sincera

A primeira parte do livro de Humberto me inspirou a escrever este pouco sobre aqueles anos 80, meu papel ali, como me vejo, aquela coisa de que falei lá em cima, de colocar em perspectiva para aqueles que me pedem ou para escrever um livro – de jeito nenhum, nem pensar, imagina, claro que não – ou voltar a escrever sobre música – ibidem.

Eu já trabalhava há três anos na Abril quando a BIZZ foi idealizada pelo Diretor de Publicidade do Grupo, Carlos Arruda. Na época (84), era assistente de promoção de Arruda e o tanto de revistas sob seu guarda-chuva. Antes, porém, tinha trabalhado como secretária do Departamento de Pesquisa de Mercado da Abril. Sonia Novinsky me indicou para Carlos, quando decidi deixar esta profissão que exercia há 6 anos. Estava na universidade e se não me falha a memória, já havia mudado de Economia para Jornalismo na PUC-SP. Na minha turma – ou uma turma adiante – estavam amigas inseparáveis desde então, como Nelcy Del Grossi, e os que deram certo na profissão, como Astrid Fontenelle e Graziela Azevedo, entre outros. Na banca de professores, pesos pesados daqueles tempos, como Matinas Suzuki e Gabriel Priolli. E um outro que não me lembro o nome, mas disse algo que nunca esqueci – um bom repórter é aquele que consegue um misto de senso de oportunidade, talento, mas, principalmente, sorte. Nem me vejo muito no primeiro ou segundo – fui sempre muito ingênua e idealista para sacar essa coisa de oportunidade, e dei muito duro para conquistar um pouco de talento na escrita. Mas com certeza sempre tive sorte. Até hoje, basta eu estar escrevendo sobre um assunto para que informações venham assim, como do nada, seja no encontro casual com uma pessoa especialista, ou num simples ‘zappear’ na TV.

Voltando a como fui parar na BIZZ, um dia Carlos Arruda chamou Sonia Novinsky para encomendar uma pesquisa no primeiro Rock`n`Rio (85) para a revista que já estava ali se desenhando. Fui chamada no meio da reunião, com Sonia dizendo: “só vou para lá se levar a Sonia Maia comigo para fazer o campo, a linha de frente, entrevistar o público”... Na época o nome composto, Sonia Maia, já tinha se tornado padrão, para diferenciar a secretária da chefe. Coincidentemente (ou não), dali pra frente ninguém mais me chamaria apenas de Sonia, ou apenas de Maia. Nem os ingleses!

Claro que gostei de ir para o R’n’Rio. Era minha primeira oportunidade de mostrar meus talentos de repórter, de assistir ao evento histórico de graça e ficar hospedada em hotel cinco estrelas. Mas acredito ser relevante, também, lembrar por onde eu andava um poucos antes desta época, quando não estava trabalhando de 2ª. a 6ª, das 8 às 6, sempre para uma grande corporação, outro padrão de toda a minha vida até os dias de hoje. (Mesmo os últimos nove anos em Londres).

Venho de uma família de classe média baixa, enorme, de descendência italiana da Calábria de um lado, e carioca de outro, extremamente unida, cheia de amor. O fato de ser, em algum momento, meio arrimo de família, precisei garantir o pão de cada dia. Não dava para arriscar muito além daquele horizonte seguro das corporações. E sempre trabalhei muito – usava o resto do tempo para me divertir, como bem entendesse, vivia o mais intensamente possível, para compensar a escravidão horário integral. Essa é minha visão ideológico-política do trabalho. Por outro lado, uma das minhas paixões é trabalhar – seja limpando o chão da casa, seja como secretária, seja como jornalista. You name it!

Dos 21 aos 26 anos, minha turma era da zona norte, apesar de eu ser da zona sul de SP. Uma mistura deliciosa de heteros e gays, na qual eu era uma das poucas mulheres. Mudei de Economia para Jornalismo por causa deles, em especial meu companheiro da época Roberto Vendramini Carvalho, que até hoje escreve maravilhosamente bem, mas recusa-se a publicar qualquer coisa. Deveria ter me inspirado nisso também. Algumas dessas pessoas, como Humberto Gentil, já acumulavam pelo menos mil livros nas estantes. O casal Arnaldo e Ricardo eram responsáveis pelas decorações e comidas fantásticas nas festas sempre inesquecíveis que promovíamos. Várias no bar Aleph, em plena Al Santos com Augusta. Líamos muito – Jorge Luis Borges, Gabriel Garcia Marques, Nietzsche, Oscar Wilde, Fernando Pessoa e por aí vai. Passávamos dias e noites filosofando, ouvíamos muita música cabeça - Egberto Gismonti, Miles Davis, Hermeto Paschoal - e adorávamos artes plásticas. E acreditávamos no auto-conhecimento e descoberta de novos mundos através do LSD. Sem querer aqui parecer mais comportadinha, nunca fui de me drogar muito – seja por conta do trabalho, seja porque não tava no meu DNA mesmo. Mas quando me interessava, aderia. Nessa época o Carbono 14 e Madame Satã já existiam, mas eu estava com esse pessoal e tínhamos o bar Aleph, do Roberto. Fui começar a frequentar esse circuito rock mais tarde, um pouco antes da BIZZ.

Então, lá fui eu entrevistar o público do Rock’n’Rio e lá nasceu, também, o meu foco como jornalista que inicia sua carreira numa revista de rock e pop: desde o primeiro momento meu interesse era o movimento que aquilo tudo estava gerando e que, ingenuamente, acreditei poderia mudar a face do Brasil mais do que a política e a economia juntas. Acreditei mesmo que se haveria um dia revolução social no Brasil, ali estava uma chance e tanto. E eu queria reportar aquilo, fomentar. Não gostava do mainstream – me interessava o underground. Nada a ver com as bandas, mas com a máquina. Não havia muita gente no jornalismo interessada no underground propriamente dito, então assumi aquela bandeira. Para mim, quanto mais sujo o som, melhor. Mas a música não tinha muita importância, e sim o que ela estava provocando.

Nunca tive coleções de discos, nem li biografia de astro algum, a menos que tivesse que escrever sobre ele(a). Se me perguntarem qual o primeiro disco do Bowie, não saberia dizer, como não sei até hoje. Minha atual coleção de CDs, formato que odiei desde o primeiro momento, é pífea. A de MP3 um pouco melhor, mas mesmo assim comparada com as de jornalistas de música e músicos! Meus 90 vinis ainda estão em Londres, e ficaram no Brasil pelo menos seis anos antes de conseguir levá-los para lá. Meu ‘aparelho’ de som é hoje das lojas Bahia. Enfim, tudo isso para ilustrar que desde sempre em casa gostei mais do silêncio. E quando ouço música, é um momento especial, normalmente para dançar... Por isso gosto muito mais de pistas de dança e shows. Minha relação com a música é corporal – não gosto de deitar e ouvir música, ou ouvir música enquanto tomo banho ou enquanto estou em casa fazendo nada. Gosto de ouvir música no carro – e já que odeio carros nem isso rola mais... Gosto das quatro paredes e do silêncio, tanto quanto da pista de dança, onde não consigo ver ninguém, tal espiral na qual me envolvo.

Portanto, podem ver, era totalmente descredenciada para falar sobre música - nunca escrevi resenhas de discos na BIZZ. Mas talvez por isso mesmo cabia bem no papel de repórter. Das bandas e seus autores, me interessava mais o que diziam... Sempre que pegava um novo disco, antes mesmo de colocar na vitrola corria para o encarte com letras... Daí a música fazia sentido, como uma moldura. Os álbuns funcionavam primeiro como livros de poesia pop-rock para mim. E o pessoal dos anos 80 era realmente bom nisso. Fartamente bom, em todos os estilos: Julio Barroso, Cazuza, Renato Russo, Arnaldo Antunes, Cadão Volpato, Edgard Scandurra, Pamps, Humberto Gessinger, Rubs Troll, a dupla Sandra Coutinho e Rosália Munhoz, Julio Reny, João Gordo. Só aí já temos um momentum e tanto... E há tantos mais... Dezenas deles.

Era a repercussão deste discurso na mente e atitudes dos jovens que me interessava reportar. Tinha uma obsessão em trabalhar sob as estritas regras éticas do jornalismo, quando as linhas eram bem mais claras, quando jornalista não saia com sua foto estampando sua reportagem. Nunca gostei de ir para back stages, por exemplo, apesar de ter ido a alguns. A música ao vivo, porém, tanto quanto a música da pista, sempre me atingia o ventre e pés em cheio. Danço loucamente, para mim mesma tem um efeito delicioso, mas nunca dancei em frente ao espelho, então nunca soube como as pessoas me vêem. Em shows, conseguia me conter na maior parte das vezes (em nome da ética jornalística). Quando não conseguia, saia das salas VIPs e tentava me camuflar entre a audiência. Porque tenho a sensação de que quando te vêem dançando em um show, te tiram pra tiete, diferente de você dançar na pista, que fica mais claro é pela música... Sempre dancei pela música – sou leonina com muitos planetas chaves na casa 10, incluindo o sol, então nunca conseguiria ser tiete, outra coisa que não está no meu DNA. Sempre entrei nas entrevistas com artistas famosos como se fôssemos iguais – no sentido de nunca ter me sentido ‘nossa, meu Deus, estou na frente do... Renato Russo, do Cazuza’...

Não me interessava por back stages por duas razões: primeiro, não condizia com a ética e, segundo, porque nunca vi clima mais esquisito que o de camarins, principalmente pós-show. Só a tietagem para cegar esta percepção. Por conta disso, cheguei a cometer mesmo algumas gafes, como quando não fui agradecer ao Renato a dedicatória que me fez no show de aniversário da BIZZ no Projeto SP. Eu tinha ido recebê-los no hotel, e ele com aquela sua vozinha: ‘se eu não esquecer, vou lhe oferecer uma música hoje à noite’. Resolveram fazer um show de covers, e Renato soltou, antes de Heroes, do David Bowie: ‘esta vai para uma moça chamada Sonia’.

Por conta da lisura jornalística também, evitei me relacionar pessoalmente com artistas que já tinham alcançado um certo olimpo. Mas tive encontros mais pessoais com alguns, fora das entrevistas, mas nunca passaram de um ou dois. E segui por mais de cinco anos escrevendo e reportando bandas ainda desconhecidas, fazendo algumas das grandes entrevistas com os grandes nomes, e me divertindo com as bandas underground e meu círculo de amigos, que não estavam ligados necessariamente ao rock, e o qual matenho firmes laços até hoje, incluindo aquela turma da zona norte.

Aí, simplesmente, deu uma vontade de mudar. Depois de 4 ou 5 anos, era chegada a hora de move on...Pensei: estudei jornalismo porque me interessava pelo lado político-social da coisa. Tenho que ir além do rock. Foi quando deixei a BIZZ para fazer outras coisas. Tudo que importa escrevi lá. Basta recuperar os arquivos, que agora estão digitalizados e foram lançados até em CD, ouvi dizer...

Eu nunca me dei muita importância, pra ser sincera. Jornalista não era importante, ficava ali deliciosamente oculto atrás da mesa e da máquina de escrever. Era mais uma fazendo meu trabalho. O que achei curioso é que, depois de mais ou menos três anos fora do circuito, amigos vieram me contar estórias, no mínimo, engraçadas... Um disse que estava um dia conversando com um cara no balcão de uma casa noturna e meu nome apareceu do nada, com a pessoa dizendo que eu tinha ido morar em Londres, pelo menos oito anos antes de eu tomar esta decisão. Outro comentou que esticou o pescoço ao ouvir um grupo pronunciar meu nome - sempre o Sonia Maia -, e que falavam: ‘ela casou com o fulano de tal’, acho que um artista em evidência na época que não lembro mais o nome. Claro, não havia me casado com ele. Meu primo, que morou comigo um tempo e trabalhava montando gôndola de supermercado com saquinhos de batata frita, comentou com um colega que morava com a prima, Sonia Maia. E ele: “a Sonia Maia da BIZZ? Cara, você tem que me levar para conhecê-la!” A que meu primo rechaçou com sua típica atitude de primo-machista-protetor: "Sai prá lá cara! Que conhecer que nada!”... e mais recentemente acabei sabendo que um cara disse nunca ter ido para a cama comigo porque “eu tinha transado com o Cazuza!” Não, nunca transei com o Cazuza, ou outro pop star. Tinha vastas opções pelas noites afora. E na platéia (rs).

Então, veio aquela sensação não muito agradável de que eu talvez tivesse me tornado uma lenda – melhor dizendo, lendinha. Nada pior né... Eu, particularmente, fico feliz de não ter voz – importante são os acontecimentos e a forma como são reportados.

Desde que me conheço por gente digo que se um dia tivesse que agradecer alguém pelo que sou e pelo que me tornei, o faria a meu irmão. Acredito que para me entender, é preciso entender a minha relação com Júnior e talvez o tributo que escrevi à ele possa ajudar. Está aqui no blog, no arquivo de janeiro de 2010.

Daquela época, os anos 80, e olhando agora com os olhos e sentidos de quem esteve muito tempo fora do país – últimos nove anos em Londres – tenho a impressão de que os mais felizes são os que conseguiram se livrar das garras da máquina ou sobreviver à ela. Muitos não conseguiram. Humberto talvez seja um dos raros casos – talvez a má crítica deu-lhe a liberdade de ser o que é, o que acredito teria acontecido mesmo se ele fosse uma unanimidade como o Renato. “Tem dias que gostaria de acordar e simplesmente fazer um Abba brotar”, disse não exatamente com essas palavras, mas com este sentido um dia Renato Russo em uma de suas entrevistas à mim. Cazuza se deixou levar...Foi lindo o que fez para a história e contra o preconceito aos portadores de HIV, mas custou-lhe um alto preço. A Veja carregará para sempre o carma de uma atitude ignorante, nefasta, preconceituosa na sua famosa capa de 89. Disso, jamais se livrará. Ninguém da nossa época esquece – ou deveria esquecer.

Foi sintomático. Com aquela matéria, fechavam a tampa de um movimento e minimizavam à zero sua importância na cultura brasileira. Como se a máquina tivesse colocado em um paredão obscuro todos os seus protagonistas para esconder o ato dizimador do grande público, metralhando-os, ali, não sem antes vedar-lhes bem os olhos... ou pior, não metralhando-os, mas sim encurralando-os por anos a fio, como em uma câmara de tortura, deixando pingo a pingo cair, até se renderem e finalmente serem jogados a sete palmos abaixo da terra.

Outro dia, conversando com um primo de 18 anos, que entrou em uma festa de família com a camiseta dos Beatles, perguntei se conhecia A, B e C, nomes logo após o primeiro escalão da música pop e rock daqueles tempos... E ele: ‘não é da minha época... não está na mídia... não conheço’. E eu: ‘mas Beatles também não é da sua época!?’... A conversa foi indo e ele se irritando, até que soltou: ‘olha, toda vida ouvi dizer que os anos 80 é da geração perdida, sem heróis”.

E olhei para ele sem conseguir conter um sentimento de piedade.

sexta-feira, setembro 10, 2010

Religão e Intolerância - o poder da mass mídia

Hoje fiquei entre CNN e Globo News na cobertura de 'to burn or not to burn' do Alcorão pelo pastor norte-americano Terry Jones, que carrega a fama de manipulativo e controlador, segundo a CNN, mas quem Luiz Felipe Pondé, no Entre Aspas hoje, considerou ' um representante autêntico (?) de uma América profunda, insatisfeita', entre outras bobagens ditas por ele, como quando fala:`no ocidente tolerância é um problema unicamente do ocidental regular, porque o muçulmano radical é intolerante`. Affe! Que revelação!

Mas Pondé acerta quando deixa de lado seus achismos - que desprezam o contexto histórico da questão muçulmanos radicais x USA - ao dizer que o governo Obama deveria ter intervindo na questão da construção da mesquita perto do destruído WTC há mais tempo. Em prol de uma postura de tolerância que não condiz em nada com a política armamentista fora de casa, deixou que um pastor tão ignorante quanto um muçulmano radical se tornasse a cereja em cima do bolo para a mídia de massa em sua constante e desesperada corrida por notícias com potencial bombástico. Hoje, em nome da notícia e da liberdade de expressão que a lei lhe outorga, o 4o poder faz o que bem quer sem pensar nas consequências e, princpalmente, na importância de seu papel social, formador e fomentador de opiniões. O ato de um pastor insignificante ir lá queimar uma dezena de Alcorões no quintal de sua igreja teria desencadeado tamanho furor no mundo se a mídia o tivesse ignorado? O que fez a mídia dar tamanha importância à Terry Jones, além de sua sede por audiência e de gerar polêmica?!

Durante a cobertura internacional, ficou claro que os muçulmanos em protesto estão entendendo a queima do Alcorão como um ato dos EUA contra o seu mundo. Para eles, o que aparece na mídia de massa é representativo da vontade de toda uma nação. Quem os levou a pensar assim? Por que são tão intolerantes, revoltados? A lista de razões é interminável, mas vale citar pelo menos dois elementos chaves históricos: o baixíssimo nível educacional e o dia a dia de luta para sobreviver em um ambiente marcado por governos corruptos dentro de casa e que foram alimentados, historicamente, pelas ex-potências ocidentais, que em casa falsamente hasteiam a bandeira de nações tolerantes, de uma democracia que estes povos nunca vivenciaram na prática e que até hoje só lhes trouxe desagravos.

Das lembranças de meus recentes dez anos vividos dentro da sociedade inglesa, sempre me lembro de um diálogo com Noll Scott, um dos jornalistas mais brilhantes que já conheci, que infelizmente não está mais entre nós, e responsável pelo melhor projeto de jornal on line já desenhado - o do The Guardian - e pelo qual ganhou vários prêmios.

- Noll, não consigo entender como vocês, ingleses, são tão tolerantes com atitudes, muitas vezes, visivelmente intolerantes de comunidades não-inglesas vivendo em Londres.

Ao que Noll simplesmente respondeu: - porque senão haveria uma guerra civil.

Como adverte Chris Brazier, autor do 'No-Nonsense guide to World History', publicado pelo New Internationalist, no capítulo 4, Deus e o Espírito - profetas e videntes despontam por toda Asia no século VI AC, pavimentando as raízes dos principais e mais modernos movimentos religiosos. 'O século VI AC foi um dos mais extraordinários da história humana. Mesmo assim, nenhum líder político ou historiador daqueles tempos entenderia como pessoas como nós, 25 séculos depois, nos lembraríamos dele. Talvez esteja aí uma lição: talvez nossa própria era será lembrada menos pela descoberta dos computadores e viagens aéreas, armas nucleares e chegada à Lua, que pelo nascimento de um obscuro profeta, cujas ideias varrerá o mundo nos séculos seguintes'.

Não surpreenderia o surgimento de um novo Hitler, não pela eleição 'democrática' de um povo, mas por uma via ainda mais nefasta: manufaturado pela manipulação da mídia de massa.