domingo, maio 02, 2010

Rufam os tambores para a 29a Bienal de São Paulo

A 29º Bienal de São Paulo, que acontecerá de setembro a outubro, iniciou, em 10 de março, seu ciclo de palestras no Teatro Arena. O artista albanês Anri Sala, convidado da noite, falou para uma sala lotada.

Como anunciam seus organizadores, “a Bienal deste ano está ancorada na ideia de que é impossível separar arte e política”. Neste sentido, foi muito benvinda a escolha de Anri Sala, que trouxe mais para perto de nós seu país, pouco conhecido por aqui, e como aquela cultura e política se injeta e se reconstrói na estética proposta pela sua arte. Não conheço a Albânia, mas tenho amigos albaneses. Além disso, questões da economia, política e cultura dos países do Leste Europeu passaram a fazer parte do dia a dia da comunidade européia desde a queda do muro de Berlim. Principalmente em lugares como Londres, onde vivi nos últimos dez anos. Talvez por isso, não pude deixar de ver em todos os trabalhos mostrados na noite por Anri Sala sua Albânia. Mesmo quando escolhe um prédio de Berlim ou uma fila de caminhões no Arizona como cenário.

Assim como outros artistas, Anri faz uso do cinema e do video como suportes. Diferente de muitos, o artista albanês mantém um aspecto comum da cinematografia, que é o ‘contar uma estória’. Anri o faz, no entanto, sob o ponto de vista de um artista interessado em enfatizar a estética, a sintaxe, a linguagem , os sons e, principalmente, o silêncio, para promover interrupções, descontinuidades e, com isso, trazer à tona ora o peso político, ora a tensão emocional, ora a influência externa que de outra forma não seriam notados nos universos que retrata. Anri usa tudo que aprendeu e pesquisou sobre arte para retratar a essência aprisionada no tema que escolhe, de forte apelo político, emocional ou simplesmente reproduzindo o que acontece ali mesmo no lugar da gravação, ao acaso, como foi o caso do posto de parada de caminhoneiros em uma estrada do Arizona.

O primeiro filme-documentário mostrado por Anri data de 1998, mesmo ano em que na Albânia um membro do parlamento era assassinado, uma mostra clara de que o país estava novamente à beira de uma guerra civil. Havia armas e tiros por todo o lugar, tantos que as pessoas tinham que sentar-se ao chão em suas casas durante as refeições, temendo serem atingidas por balas perdidas. “Crescemos acostumados ao som dos tiroteios e reportagens diárias de pessoas morrendo por causa de balas que ricocheteavam enquanto tomavam café nos seus terraços, ou dançavam na celebração de um casamento”, como contou, certa vez, uma amiga jornalista albanesa sobre aquela época.

No filme, a mãe de Anri assiste a si mesma na TV, uma gravação que ele recuperou, deixou muda e legendou. Sentados no sofá, a mãe protesta junto ao filho: “Não, eu não disse isso!”. Ela não parece irritada, mas estática ao ouvir a si mesma em uma entrevista concedida há 20 anos, quando fazia parte do Congresso Jovem Albanês e defendia uma política inspirada nas teorias de Marx-Lenin. “Aqui vê-se o colapso da sintaxe perante a abrupta e pesada mudança política desde a queda do sistema, e a adaptação às necessidades – a descontinuidade do conteúdo, da ideologia, de alguém que não quer assumir o discurso de uma época”, comentou Anri.

O artista apresentou, também, um filme de sete minutos rodado em um posto de repouso usado por caminhoneiros no Arizona. Com o rádio do carro ligado, percebeu que a frequência mudava toda hora que passava por um caminhão em cuja lona lia-se: Air Cushion Ride. Passou a rodar pelos caminhões e registrou a cena e os sons. Durante os exatos momentos da passagem por esse caminhão em particular, as ondas do rádio pescavam uma estação de música clássica barroca, transformando aquele cenário árido, um imenso pavimento de concreto de caminhões enfileirados, em algo completamente novo, poético, humorado, meio fanstasmagórico até – such as a ride on an air cushion. Ao deixar o caminhão para trás, o rádio voltava a transmitir a estação de country music na qual o artista supunha estar sintonizado.

Um músico transcreveu a gravação para uma partitura e Anri pediu, depois, para uma orquestra interpretá-la.

Além desses dois trabalhos, Anri mostrou ainda um curta rodado na Berlim de 2008 no prédio que serviu de base tanto para a CIA nos tempos da guerra fria, como para os nazistas durante a Segunda Guerra. Os três edifícios foram erguidos perto da The Devil’s Mountain (A Montanha do Diabo), criada artificialmente a partir de prédios destruídos em guerras passadas. Escolheu este espaço para retratar o momento de separação de um casal. Aí não há conversação, mas “o silêncio mostrando a dimensão negativa do discurso “, como ilustrou Arni. O personagem masculino jogava toda sua ira em uma bateria e na música ali tocada, enquanto a companheira pedia, inutilmente, que ele respondesse à ela. A acústica do local provocava um eco tão intenso, a ponto de induzir duas baquetas solitárias sobre uma caixa a tocar por si, no mesmo ritmo – o que intensificava ainda mais a tensão entre os dois, ao mesmo tempo que pacificava.

Finalizando a noite, Anri falou da mostra permanente que mantém em duas salas de cinema, uma em Paris e a outra em Berlim. São 60 filmes, escolhidos entre produções hollywoodiana e outras do circuito alternativo-cultural, cuja projeção sequencial está conectada a um termômetro, que provoca interrupções e alternância entre os filmes de acordo com a mudança da temperatura lá de fora.

Ao sair do Arena, parecia ouvir o rufar dos tambores da 29ª Bienal. Como conta sua história, “trata-se do único evento brasileiro assinalado no calendário internacional da arte e da arquitetura. Há meio século a Bienal de São Paulo vem projetando o Brasil no cenário mundial, sendo considerada, junto com a Bienal de Veneza, o mais importante evento do gênero entre os mais de cinqüenta existentes no mundo.”

E mesmo com as controvérsias que provoca, a Bienal nunca deixou de despertar o interesse de milhares de pessoas, de todas as camadas da sociedade, que vêem ali uma oportunidade de entrar em contato com um universo único – colorido e sombrio; desafiador e brincalhão; imenso por sua própria imponência ao mesmo tempo que pequenino como a cabeça de um alfinete; particular e global; poético e irritante; e ainda mais: também um espelho do outro e de nós mesmos. E talvez naquela noite pós-visita, como sugeriu Chico de Assis no final de sua fala no Arena, algumas pessoas cheguem em casa, olhem no espelho e vejam diante de si a grande arte. “Então”, continuou Chico, “hoje, quando forem dormir, não durmam na mediocridade de seu quarto, mas sim onde estão, em uma galáxia.”

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A 29ª Bienal não começa nem acaba no seu pavilhão do Parque do Ibirapuera. Promove, ainda, um conjunto de ações, como nove oficinas, ciclo de palestras, workshops, residências artísticas e um programa educativo envolvendo perto de 6.000 profissionais do setor. Boa parte dessas atividades acontecerá no Teatro Arena e em parceria com a Funarte e o Projeto Capacete.