domingo, julho 24, 2005

Sede de Matar

O assassinato pelas costas do brasileiro Jean Charles de Menezes pela polícia inglesa mostra que não há país no mundo que possa servir como modelo de democracia. E que a ignorância da política mundial tornou-se epidêmica.

Quando vi a notícia, na sexta-feira passada, de que um homem tinha sido morto com cinco tiros por policiais ingleses a paisana no metrô de Londres e as circunstâncias em que tudo aconteceu, pensei estar de volta ao Brasil. Perguntei imediatamente para a audiência à minha volta: ‘Se dominaram o homem ao chão, por que atiraram nele? ‘Por que cinco tiros em vez de um?’ Todos tinham uma explicação plausível, a mesma que as autoridades estavam dando para a mídia: ele tinha um cinturão cheio de arames.... ‘Mas isso poderia ser um cinturão fashion!’, foi minha resposta. A cena tinha um gosto amargo. Assim como os sons ininterruptos de sirenes que dominaram Londres logo após os atentados de 7 de julho. O poder e seus soldadinhos de chumbo haviam encontrado uma desculpa.

A Grã-Bretanha, até pouco tempo famosa por seus policiais desarmados, está usando os atentados de 7 de julho para fazer um show de intimidação. Uma desculpa para instituir abertamente a política do medo, que tão eficientemente re-elegeu Bush nos EUA, por exemplo. Finalmente os soldadinhos de chumbo poderiam empunhar suas armas: estava ali a desculpa. Finalmente os soldadinhos de chumbo poderiam atirar e matar.

A notícia, após alguns dias, de que o homem morto não tinha conexão alguma com os atentados não foi recebida com surpresa, pelo menos por mim. Mas a notícia de que o homem morto era um brasileiro bateu ainda mais duro no peito. Porque é como se tivessem matado um parente ou amigo próximo, querido. Isso porque, vivendo longe da nossa terrinha, por mais que isso tenha sido uma opção própria e feliz, como é o meu caso, há óbvio carinho e amor principalmente por nossa gente. E admiramos e apoiamos uns aos outros por aqui, porque acabam tornando-se nossa família, nossa referência, nosso pedacinho de Brasil. Então Jean Charles era como um amigo, um parente e por ele chorei e choro ainda escrevendo estas linhas.

Seria ótimo se o Brasil estivesse em posição de fazer desta tragédia uma motivação para defender um mundo menos violento e mais justo. Poder tornar este desperdício de uma vida em um episódio para mostrar quanta ignorância domina a política mundial de hoje. Mas infelizmente não temos uma cara limpa. Jean correu de seus perseguidores provavelmente porque de repente se viu no Brasil. Se tivesse acontecido no Brasil, não haveria escapatória: se alguém está te perseguindo lá, não faz muita diferença se você corre ou se você pára. Então, na maioria das vezes, você acaba seguindo um instinto qualquer. Não somos nós que criamos o dito: se ficar o bicho come, se correr o bicho pega?

Seria bom se tivéssemos um órgão ou um país que pudesse dizer: eis aqui um exemplo a seguir. Mas não temos. Não temos uma Organização das Nações Unidas desempenhando seu papel como deveria. Não temos um país modelo. O que temos, como disse em meu primeiro artigo de Fomento, é o terror de sermos governados pela ignorância que semeia e gera ignorância, sem fim, sem limites, sem fronteiras.

sábado, julho 09, 2005

London blasts - A gramática da ignorância

O verdadeiro terror é a ignorância dos que estão no poder em achar que mantendo boa parte da população na ignorância poderão assim controlar ainda melhor tudo à sua volta. O verdadeiro terror é sermos governados pela ignorância que semeia e gera ignorância, sem fim, sem limites, sem fronteiras.

Disse que ia escrever um pouco mais sobre as bombas sob Londres então aqui estou.... Rodeado pelos outros sete no dia das explosões, Blair falou como um ignorante.

'Vamos confrontar!', 'Inimigo sem face' eram as palavras vindas dos políticos ingleses no dia em que al-Qaeda bombardeou Londres. É claro que o inimigo tem face e ‘confrontá-lo’, que no jargão Bush-Blair significa retaliação com mais violência, é a solução mais imbecil possível.

Quem acompanha um pouquinho as notícias e cava um pouco mais, sabe que Osama Bin Laden espalhou um vírus e que esse vírus espalhou-se, principalmente, entre jovens muçulmanos desempregados, sem educação e sem uma perspectiva de ocupar lugar algum na sociedade – um perfil bem familiar aos que vivem do lado de baixo da linha do equador. Esta é a face dos responsáveis pelas bombas de ontem. Esta é a face dos soldados do al-Qaeda. E, na verdade, esta face está em todo lugar, mesmo nos países desenvolvidos. A concentração de renda afeta a todos, em menor ou maior grau.
(Há quem conteste. Há aqueles que sempre vão apontar para o fato de que nem toda violência tem sua raíz na questão social. Pois eu gostaria de ver esta teoria na prática e acredito que a única forma de prová-la seja diminuindo significativamente as diferenças sociais. Somente então poderemos provar tal afirmação. Sem uma distribuição de renda justa, sem as altas concentrações de capital e riquezas nas mãos de poucos, não vejo como desconectar estes episódios dos desníveis sociais).

E apesar de Bob Geldof ter feito, recentemente, um evento bonito e comovente, perdeu a grande oportunidade de atacar o problema de forma mais ampla: a África é global, o que acontece na África acontece em dezenas de outros países, centenas de estados, milhares de cidades e afeta bilhões. Claro que na África a situação é seríssima e há muito, muito tempo o mundo deve à África um pedido imenso de desculpas seguido de toda a ajuda necessária para torná-la a grande nação que era e ainda é. Uma nação que começou a se desmantelar com a invasão inglesa e holandesa, estabelecendo fronteiras que favoreciam os colonizadores, mas obrigavam tribos e povos rivais a dividirem o mesmo solo. Aí começa boa parte da história das recentes guerras civis em solo africano. E o vergonhoso Apartheid estabelecido, que todos dizem acabou, mas suas consequências podem ser vistas no comportamento das pessoas ainda hoje nas ruas de Johannesburg, por exemplo.

A miséria de vida, a perspectiva de tornar-se um não-humano há muito afeta até mesmo os que morreram e foram feridos ontem e antes em atentados semelhantes, provavelmente muitos deles participantes de marchas como a contra a Guerra do Iraq. Um círculo vicioso e viscoso do qual não escapam nem as famosas ONGs, que se beneficiam desta miséria recebendo o bolo destinado à combatê-la com a missão de administrar estes recursos....Chega de paternalismos - nenhum povo precisa dele ou o quer...Favoreçam as comunidades diretamente e a infra-estrutura à sua volta. Não pecisa nenhuma entidade de caridade estrangeira administrando os fundos à elas destinados. God bless Sérgio Bianchi e seu ‘Quanto Vale? Ou É por Quilo?`. Adoraria ver uma exibição especial do filme para um punhado de ONG’s escolhidas e ouvir o que têm a dizer.
Como comentou Sérgio Bianchi num debate sobre o filme, a partir do momento que você cria um produto, cria-se um mercado e, portanto, este produto não pode deixar de existir, de outra forma, seu mercado acaba. Há ONGs que desenvolvem trabalhos fantásticos, sem dúvida, mas não podemos perder o foco, magnificamente apontado por Sérgio. A pobreza tornou-se um produto e alimenta um mercado estabelecido, o das ONGs... Portanto, se for eliminada, eliminado é também o mercado que gira em torno dela. Pare, pense!

O grande desafio é: como nos livramos dos políticos e da política como vem sendo exercida no mundo hoje? Talvez tenha que começar pela reformulação da ONU – nenhum país individualmente deveria ter o poder de ir contra as decisões do órgão (a questão do veto). A ONU está também contaminada e precisa retomar seus princípios, mais local com leis globais. A lei básica dos direitos humanos deveria prevalecer acima de toda e qualquer lei e deveria ter uma aplicabilidade global. Hoje sua aplicabilidade é pura retórica: quantos documentários não foram mostrados na TV, pessoas sendo violentadas em lugares onde a ONU estava presente, mas seus soldados não podiam fazer nada porque eles não podiam ‘interferir’. Como assim? A ONU não pode interferir, mas os EUA podem?

Há também que reduzir por completo o poder armado das nações. Primeiro: banir totalmente a venda de armas como uma forma de comércio e enriquecimento dos países que as produzem. Arma não pode ser um produto que se vende de prateleira. Com uma ONU fortalecida – e o órgão tem estrutura, inteligência, história e know how mais do que suficientes para levar este trabalho adiante – o grande poder de fogo deveria se concentrar na ONU e os países seriam autorizados a ter apenas o equivalente para manter sua ordem interna.

Se a ONU fosse realmente forte, Bush não teria conseguido levar suas tropas ao Iraq, porque ele não recebeu autoriazação para tanto e aí mora o demônio. Ele mostrou ao mundo que a ONU não passa hoje de um órgão de aparência. A melhor instituição política que o ser humano já conseguiu criar está sem face, sem poder, centralizada e vítima de sua própria ambição. A questão das armas é seríssima. Se não criarmos novos mecanismos para controlar o uso de armas, nada vai mudar. O que mantém os políticos e sua política no poder é o fato de terem o poder sobre as armas e, consequentemente, o controle da violência. E quem tem mais armas, grita mais alto. Política baseada ainda no tempo das cavernas: quem tem o tacape mais forte, degola mais rápido o outro.

E em relação aos muçulmanos, como vários jornalistas e vários muçulmanos vêm apontando, o mundo muçulmano também tem que enfrentar com mais determinação seus radicais. Eu já fui e ainda sou radical em vários aspectos chaves de minhas ideologias. Na minha opinião, não é no radicalismo que mora o perigo. O radicalismo pode ser um ótimo instrumento no amadurecimento saudável e inteligente de mentes novas.

O terror nasce da ignorância que permeia certos radicalismos e a dose cavalar de discriminação e preconceito que carregam. Não sou relativista cultural e não venha me dizer que as mulheres muçulmanas são felizes em vestir um véu ou uma burka, por exemplo. Eu já fui a um casamento radical muçulmano, onde as mulheres ficavam em uma sala de venezianas abaixadas em pleno dia de sol – negar a elas a celebração de um casamento com a luz do sol entrando pelas janelas, apenas porque os homens que por lá passariam poderiam ‘vê-las’. Nenhuma tinha uma face feliz. Ou basta ler qualquer best seller que aborde a cultura muçulmana, como Brick Lane, de Monica Ali. Ou as colunas de Reem Haddad no New Internationalist. São pequenas mostras de que temos sim que entender melhor as diversas culturas que habitam o planeta, e o exercício é iluminador – por exemplo, descobrir que a solidariedade é típica de todos os povos (outro jargão). Mas uma palavra desconhecida das grandes corporações e dos políticos que fazem parte de suas folhas de pagamento, na qual a moeda mais forte é o Poder.
O verdadeiro terror é a ignorância dos que estão no poder em achar que mantendo boa parte da população na ignorância poderão assim controlar ainda melhor tudo à sua volta. O verdadeiro terror é sermos governados pela ignorância que semeia e gera ignorância, sem fim, sem limites, sem fronteiras.